Um ciclista em coma
Estilou está em coma. Se conseguir sair do coma os médicos
dizem que ele ficará com seqüelas. Traumatismo craniano.
Três partes quebradas do seu crânio. Foi nesta sexta-feira,
23 de agosto, indo para casa de bicicleta ? meio de transporte
bastante utilizado por ele ? , na última curva do último
morro para chegar à Barra da Lagoa. Ele encontrou um carro
de frente, e voou batendo a cabeça no chão. O carro?
Esse passa bem, deverá sair da oficina sem cicatrizes ou
seqüelas.
Conheci o Estilou em dezembro de 1997 quando eu e meus então
companheiros de banda fomos tocar em São Paulo. Acho que
foi ele a pessoa que mais me encantou ter conhecido em São
Paulo nessa viagem.
Vendia livros na Letras (?) da USP e faz alguns anos que havia
se mudado para Florianópolis. Aqui, continuou trabalhando
com venda de livros, desta vez na UFSC principalmente. Nunca ficamos
muito tempo sem nos encontrar já que eu estudava lá.
Mas também não costumávamos conversar muito.
Nesta sexta-feira, eu havia resolvido visitar uma amiga que havia
chegado a pouco tempo em Florianópolis e iria morar alguns
meses por aqui. Pegaria o Canto dos Araçás para
ir da UFSC à Lagoa depois da aula. Peguei o Ēnibus que
saía 16:50 do Centro. Estava um dia lindo para inverno:
sem frio, sem vento e com sol. Já havia escrito para a
minha amiga dizendo que ela alugara uma casa no bairro mais bonito
e alto astral de Floripa: a Lagoa da Conceição.
Mais do que nunca pude achar isso nessa sexta-feira.
Encontrei por acaso o Estilou no ponto do Ēnibus, e perguntei
se o Canto dos Araçás já havia passado. Ele
respondeu que não, que deveria passar logo e que ele pegaria
também o mesmo Ēnibus. Conversamos no ponto sobre a desocupação
das salas que estavam sendo utilizadas para montar um Ateneu ali
na UFSC, executada pela polícia no dia anterior.
Fomos juntos à Lagoa, de Ēnibus. Descemos no mesmo ponto.
Iríamos a partir dali em direções opostas:
eu atravessaria a ponte para pegar a Avenida das Rendeiras, ele
iria deixar seus livros na Ana, pegar sua bicicleta e voltar para
a UFSC nela. Fomos para direções opostas e, mais
do que isso, nos defrontamos com mundos opostos, com perspectivas
opostas, em um mesmo lugar.
Na esquina do ponto começamos a conversar sobre como seria
fácil e rápido ir da Lagoa à UFSC de bicicleta,
não fosse o morro que separa os dois lugares. Logo a conversa
se direcionou a constatar como estava perigoso andar de bicicleta
nas ruas, por causa dos carros, principalmente na Lagoa. Contei
a ele que um estudante de Geografia havia sido morto duas semanas
atrás por um carro enquanto andava de bicicleta. Lembrei
também que tempos atrás uma ciclista também
havia sido morta por um carro no morro da Lagoa. E a "playboyzada"
que freqüenta a Lagoa principalmente à noite deixa
as ruas ainda mais perigosas. Ele falou ainda sobre as três
vezes que havia sido esbarrado e atropelado por carros na sua
bicicleta, e que lhe renderam alguns machucados sem muita gravidade.
Foi então que ele disse, com um ar de intuição
e pressentimento: "Hoje tem alguma coisa no ar...". Não
lembro exatamente as palavras que completavam a frase, mas algo
no ar dizia a ele que aquela noite iria ser pior nesse sentido,
iria haver algum acidente, ou vários... algo no ar fazia
ele sentir que estava para acontecer algo naquela noite. Lembro
que respondi dizendo que talvez fosse pelo clima bom, numa sexta
à noite, lembrando o verão, e isso talvez fizesse
a Lagoa ficar mais movimentada e a "playboyzada" mais excitada.
Ele respondeu "talvez". Não era isso... foi frustrada minha
tentativa de racionalizar o que ele sentia.
Nos despedimos, ele com o seu tradicional "nos vemos na seqüência".
A semana havia sido caótica e turbulenta para mim. Uma
semana de ocupação e resistência que acabou
na quinta-feira. Mas pegar o entardecer na Lagoa depois de uma
aula na sexta-feira parecia ser realmente tudo que eu precisava.
A Lagoa sempre se resumiu praticamente a final de semana ou show
de rock de madrugada para mim. De fato, agora era uma quebra de
rotina, uma fuga. Eram seis horas da tarde quando cheguei na casa
da minha amiga. Ela não estava. Fui então até
as dunas. Não era a primeira vez que um passeio nas dunas
me renovava. A ausência de vento ajudava. O espaço
amplo que proporciona as dunas, sem prédios e construções,
nos dá a dimensão da opressão que a cidade
exerce sobre nós. Até nossa postura se modifica.
Caminhei, deitei na areia, brinquei um pouco com ela ? algo que
acho que não fazia há quase uns vinte anos. Aprendi
nos últimos anos a me conhecer e valorizar o contato direto
com a natureza... com a areia, com a água do mar, com o
sol. Um dia se descobre que para viver se tem que aprender a ser
criança. às crianças, dizem que preparar
para a vida é ensinar-lhes a ser adulto.
Já estava ficando escuro demais para permanecer nas dunas.
Passei pela casa da minha amiga novamente, e ela ainda não
havia chegado. Eram 18:45. Estava me sentindo bem como há
muito tempo não me sentia. Era pelo menos a segunda vez
que a Lagoa e as dunas exerciam um verdadeiro efeito terapêutico
e relaxante sobre mim. Queria sentar em um bar na beira da Lagoa
e tomar uma cerveja. Acho que nunca tive vontade de fazer isso
antes (sentar num bar e tomar cerveja sozinho). Mas aquele fim
de tarde estava diferente, parecia que eu nunca tinha ido à
Lagoa, era como se fosse algo novo, experiências novas.
Me senti um velhinho boêmio, ou pinguço ou vagabundo,
chegando num bar às sete da noite para beber cerveja sozinho.
Mas qualquer companhia no mundo atrapalharia aquele meu momento.
Era eu, eu, a Lagoa à minha frente e a bossa-nova que tocava
no toca cds o bar. Nunca fui de ouvir bossa-nova. Mas confesso
que foi maravilhoso, nunca gostei tanto de bossa-nova como naquele
momento e provavelmente nunca vou gostar tanto novamente. Me passava
pela cabeça que a única coisa que quebrava o clima,
tanto nas dunas, quanto ali no bar, eram os carros e Ēnibus que
cruzavam fazendo seu tradicional barulho, o barulho da cidade.
Quando passava um carro o som da bossa-nova quase sumia.
Se existe realmente esse tal de happy hour, eu estava tendo um
naquele anoitecer. Talvez na verdade fosse um zen hour. Mas não
importa. A Lagoa ainda tem algo de fascinante, ainda nos permite
ir além dos sentimentos e da perspectiva que nos imprime
a cidade.
Eram oito horas. Levantei da mesa com aquele sentimento de estar
quebrando ou finalizando um momento especial, quase mágico,
apesar de aparentemente banal.
Dessa vez encontrei minha amiga em casa. Ficamos conversando
até às onze horas.
Enquanto eu passava todos esses momentos na Lagoa, Estilou havia
ido à UFSC e depois à casa de um amigo nosso ali
perto. Chegando lá, a primeira coisa que ele falou após
estacionar a bicicleta foi: "Estou com um pressentimento de que
alguma coisa vai acontecer hoje". Perguntado o que seria essa
coisa e com quem seria, ele respondeu: "alguma coisa comigo, com
você.. não sei". A conversa tomou um rumo tal que
ele acabou falando novamente dos atropelamentos que havia sofrido
na sua bicicleta.
Em algum momento enquanto eu conversava com minha amiga na casa
dela ele passou com sua bicicleta pela Avenida das Rendeiras,
indo para a Barra da Lagoa. Ele passou a menos de cem metros de
nós, passou ao lado das dunas, passou ao lado da mesa que
eu havia sentado no bar. O cenário é o mesmo. Um
cenário de conflitos e contradições.
Existe um projeto de construção de uma estrada
passando pelo meio das dunas da Lagoa. Onde eu estive deitado
na sexta-feira , olhando para o céu e para o pĒr-do sol,
despreocupadamente, recarregando minhas pilhas, um dia, o mesmo
ato poderá ser um gesto de suicídio, caso aquele
lugar seja transformado em palco dessas máquinas de quatro
rodas que são incarnação dos valores dessa
sociedade capitalista.
Já é tempo de rompermos com a linguagem ideológica
que chama as milhares de vítimas de uma lógica ou
de um sistema de "acidentados". O carro, que é impensável
fora de um conjunto de valores que instituem essa sociedade, mata,
necessariamente, embora não intencionalmente. Com Ēnibus
a dois reais, muitos não têm nem sequer a escolha
de aderir ao transporte motorizado; esses são as primeiras
vítimas.
Hoje está um domingo lindo de sol. Dia praticamente perfeito
para ir à Lagoa. A Lagoa das dunas, de ainda alguma natureza
e dos carros. Insistentemente as dunas sempre tentaram cobrir
a Avenida das Rendeiras. Enterrar as ruas e os carros na areia
não é apenas uma ação ambiental ou
sanitária, significa a expansão das nossas possibilidades,
dos nossos happy hours, de não apreendermos a īnaturezaÍ
como algo exterior, de não nos subordinarmos ao domínio
do carro ou de qualquer outra técnica sobre nossas vidas.
L.V. 25/08/02
Estilou faleceu definitivamente às 14h30 do dia 29/08/02.
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